terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A Canção de Mistress

26 de Setembro.
Ela compunha uma canção,
Na mesa dolorida;
Escrevia a vida arfando:
Versículos de ameaça a solidão.
Lembrava da adolescência,
Segurando uma foto amarelada.
Foi porta estandarte.
Foi Miss Ilusão 1984.
Mudou a retórica ordinária;
Pediu a ele por amor de verdade.
Sentiu no ventre a dor de filho perdido,
Um "não" abortado.
Foi humilhada, subestimada,
Retalhada na praça.
Camuflou sua realidade com base;
Despistou sua alegria;
Distraiu seus sonhos;
Tinha uma paixão em luto,
Que sua insanidade não percebeu.
Decadente, despedaçada,
Foi jogando seus pedaços na ladeira.
Diluía-se, esfarelava-se, dissolvia-se,
Marejava em lágrimas.
Eram duas da madrugada.
Viu seu rosto borrado nos ladrilhos.
Tanto desespero que lavava sua estrada.
Encarou uma navalha,
Viu o sangue encarnar a pia,
Percebeu a morte.

27 de Setembro.
Ela tomava café com a vida.
Viu o sol entrar no quarto.
Louca, desvairada.
Lúcida, acordada.
Viva, a Mistress vivia.
Ouviu o bater da porta,
Um homem chamava seu nome baixinho,
Distante, pediria que ele gritasse naquele momento.
Um homem conhecido,
Que tocava seu rosto
E segurava sua mão com carinho;
Falando de tragédias, dramas pessoais,
Pedindo desculpas.
Mistress juntou suas frases de cinema:
As sedas já foram rasgadas
"E é hora de você crescer."
Levantou da cama,
Saiu sem rumo.
Mistress queria mudar de nome,
Sua identidade não condizia ao seu estado atual,
Seu figurino não pertencia mais à cena.
O cenário foi mudado
E a vida comum não percebeu,
Mistress passou a se chamar Lover.
A nova Lady Lover queria um sorriso no retrato.
Ela queria degraus.
Ela queria escrever uma nova canção.

Escute: Glory Box - Portishead

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